terça-feira, 20 de outubro de 2009

Em tese, tinha se mudado há alguns meses de uma metrópole violenta para uma cidade pequena e tranqüila, foi daí que resolveu fazer um teste para saber se de fato tinha se mudado para uma cidade pequena e tranqüila, ou os tais fatos decretados acerca da cidade em que vivia não passavam de meras convenções. Foi embora de casa caminhando, e ciente de que passaria a noite toda fora tendo deixado a bicicleta ao relento, com uma corrente que prendia um pneu à uma barra do aro, assim, prendendo a coisa nela mesma, numa atitude um pouco lusitana, um pouco generosa com os meliantes. Facilitou a ação para qualquer ladrãozinho que por ali passasse. No dia seguinte, quando voltou, a bicicleta não estava lá. Esqueceu do experimento empírico que planejara e das suas possíveis conseqüências, praguejou, lembrou que de fato não se pode crer na raça humana! E por um momento pensou que todo aquele que era nascido no maldito vilarejo não era digno de confiança. Passado um tempo resolveu que não choraria os quatrocentos reais que a tinham surrupiado, que a matéria se corrói e evade. Assim, quando nos damos conta, somos roubados. Roubam-nos um amor, um sonho, uma esperança, e assim é todo o tempo. Estamos sós e nus, e os bens transitam promiscuamente entre mãos e lares, indo em algum momento para o depósito de lixo mais próximo, para que se transformem em alguma outra coisa, fundindo-se no fedor terrível de todos aqueles elementos químicos. Não sabemos nem ao certo se a matéria que vemos é real. Já não podia afirmar se algum dia tivera bicicleta, e se questionava se a caloi ceci que pedalava na infância não era fruto de algum movimento onírico da sua mente ou realmente existiu, perguntou-se se a criança da infância e a mulher de hoje tinham alguma coisa em comum mais do que a carga genética e uma ou outra coincidência. Perdida nos seus devaneios filosóficos já não sabia nem se existiam bicicletas, se existia dinheiro, se morava em alguma cidade, ou se morava no meio de um emaranhado de conexões ocultas, no meio não no sentido de epicentro, mais como que diluída, se questionava se de fato tudo estava interligado, teria sido ela mesma a agente do roubo? Passou-se um tempo e bateram na sua porta, era o vizinho avisando que tinha guardado a bicicleta para que não a roubassem.




sábado, 3 de outubro de 2009

Cristiano era o filho caçula, ele tinha 11 anos, e os outros irmãos tinham idade aproximada, formavam uma escadinha, como se diz. O mais velho, Teodoro, era meio rebelde, saiu da escola em que estudava por discordar demais de muita coisa. Guilherme era meio surdo, quando falava, gritava. Quando estava apaixonado, ou muito empolgado com alguma situação, era um escândalo, berrava, a vizinhança toda ouvia e não gostava muito. Um outro era bem mais introspectivo, Tomas era capaz de divagar horas e horas sobre o amor, escrever sobre o amor, mas tinha dificuldade de dar um abraço, coisa que Guilherme não se cansava de fazer. Tomas amava transmitindo conhecimento. Tinha mais um, que se chamava João, era meio convencido, achava que o pai o tinha por filho mais especial, e para fundamentar essa conclusão mostrava algumas cartas que o pai tinha escrito, coisa que não irritava os outros filhos, as cartas eram as mesmas para todos. Eles apenas entendiam de modo diferente, o pai não era muito pragmático. Quando o pai via uma dessas discussões ria, se ela se inflamasse logo falava alguma coisa que deixava todos pensativos e quietos. Os irmãos eram bastante diferentes em alguns aspectos e muito parecidos em outros. Enquanto eles discutiam entre si, o pai os ensinava com muita paciência, como quem arruma uma mesa de ceia com esmero. Sempre faziam as refeições juntos, felizes por estarem juntos, embora tristes pelo irmão que não se sentava a mesa com eles.